Dos muitos mistérios presentes na existência humana um permanece tão subjetivo quanto confuso: o autoconhecimento. Por mais contraditório que pareça, nós pouco nos conhecemos. Essa conclusão é por si só deveras subjetiva, e tão íntima minha que muitos dos que leem duvidarão de sua validade; entretanto talvez oferecendo um breve e fugidio relato da minha experiência, seguido de argumentos eu possa me redimir de minha auto-indulgência.
Deve-se notar, antes de tudo, que a ayahuasca, segundo observei tanto em outros quanto em mim, surge como uma luz saída de uma fenda no abismo: você não sabe o que esperar caminhando até lá, entretanto sabe que ali reside algo extraordinário. Nas palavras do rapaz que me aplicou a medicina, o líder representante do Instituto:
“A mãe ayahuasca chama pelos seus”
Apesar de buscar uma pré-racionalização do que viria a ocorrer, nada de concreto pude vislumbrar em minha mente. Provavelmente o primeiro grande mistério da ayahuasca seja seu estranho chamado, seu silencioso grito, submarino como o babel das criaturas aquáticas.
O processo de beber a ayahuasca é cercado de cerimonialismo, e muitos diriam que é esse cerimonialismo e liturgia que a diferencia de uma mera droga; argumento que eu compreenderia. O processo de receber as visões é extremamente lento, cadenciado, primeiro não há nada, depois há imagens anormais para a imaginação surgindo no escuro dos olhos… E então o sono. Sono. Sono. De repente surge um abraço frontal, um conforto, um incômodo; surge o desejo de ser amado, um enjoo, o desejo de aceitar aquela emoção e também de rejeitar. Florais verdes com pétalas vermelhas e polén amarelo adornaram o escuro dos meus olhos, brilhante, e de repente um insight:
“Eu nunca fui verdadeiramente amado nessa vida.”
Foi estranho ficar semi-consciente por horas. A todo momento sentia um incômodo existêncial sem razão, que era acalmado pela paz que se seguia antes de retornar novamente. Em dado momento isso me incomodou ao âmago. Eu fui à luta. Abri os olhos e deixei de me entregar, me sentia mal, entorpecido, me perguntando o que fazia ali daquela forma, mas sabia que estava fora de mim demais para sair correndo dali. Suportei. Fui cuidadosamente confortado. Se a dita entidade por detrás da ayahuasca é uma mulher, foi ela a única mulher capaz de me dominar o corpo. Ela me jogava de volta ao colchonete quanto mais buscava lutar e aquilo me assustava. Na minha experiência, como homem duro e forte que sou, com nervos de aço e alma de falcão, aquilo era uma invasão intolerável.
Naquela angústia, naquela luta eu vi o que era importante: minha família, meus hobbies, meus amigos, meu lar e minha razão. De fato, eu pensava que ver aquilo era demais para uma alma renascentista como a minha: eu anseei pela doce normalidade. E então vomitei. O vomitar durante um ritual de ayahuasca é dito como limpeza, como purificação de tudo que suja nosso ser; sim, eu estava bem sujo. Não apenas por ter passado por muitas coisas ruins, mas por ter uma alma naturalmente negra. E com essa limpeza veio a calma, e sono. Sono de novo. Me senti estranhamente confortado enquanto dormia. Naquele momento entendi a provação, entendi o porquê a chamam de mãe.
Após isso, eu e todos os presentes fomos acordados. Eram 00:00. Havia uma calma sobrenatural no ar. Conversamos todos e eu me abri. Falei das primeiras imagens que vi: sangue, tortura, muitos olhos. Falei da paz e de todo o resto. Mas ocultei de onde todas essas imagens provinham. Isso é algo meu. E sou egoísta com tudo que é meu, intimamente meu; é demais para os outros suportar. É meu jeito ser. Mas pela primeira vez em anos não me senti confuso, havia clareza em meu pensamento. A razão havia voltado de suas longas férias, entrou sem dizer nem “Oi”.
Por fim eu me fui. De alguma forma eu sabia que não pertencia àquele local. Não porquê ele é ruim, antes o extremo-oposto. Aquele local era maravilhoso. Mas eu sou o problema: sou um racionalista, um ultra-fasxo, um cientista, o outro lado e sua incerteza natural me assustam. Fui o único a partir. Mas partir reconstruído, como se tivesse acordado de um sonho: Minha vida até aqui, desde meus 17 anos foi um mero sonho, insuportável, confuso, anti-natural; estava envenenado. Saí de lá sabendo o que amo e valorizo: A presivibilidade, a ordem, a fria racionalidade, minha família, a ciência, a escrita, a filosofia, meus amigos, a conexão um para um. E foi para isso que fui lá.
A ayahuasca vai te chamar, vai te bater, te surrar e nesse processo te curar e te trazer certa paz. Mergulhe nisso até aonde der, não se prenda a nada que escrevi, pois como disse anteriormente, é tudo subjetivo. Mas vá ciente: A ayahuasca surrará, e isso é bom!